Entre o Homem de Lata e a Vida Real da Atualidade – A Oz de hoje

Entre o Homem de Lata e a Vida Real da Atualidade

Entre o Homem de Lata e a Vida Real da Atualidade – A Oz de hoje.

O Mágico de Oz, publicado em 1900 por L. Frank Baum, surgiu em um período de transformações nos Estados Unidos, com a industrialização e ubanização aceleradas e intensos debates sociais, incluindo debates sobre gênero.

 

O personagem Hickory parece um coadjuvante sem brilho: um homem simples da fazenda do Kansas, que, ao atravessar a imaginação de Dorothy, se transforma no Homem de Lata. Mas a aparente insignificância desse personagem guarda um espelho incômodo de nossa contemporaneidade. Hickory encarna a falta. A crença de que não possui coração, de que lhe falta a sensibilidade que define a humanidade. No entanto, a metáfora é clara: o coração já estava lá, apenas oculto.

 

Quantos de nós não vivemos hoje nesse mesmo equívoco? Cercados por convites incessantes a exibir alegria, acabamos convencidos de que não sentimos o bastante, de que estamos aquém da intensidade prometida pelos outros. Preenchemos o vazio com anestesias: a bebida que oferece euforia, mas entrega silêncio; o feed das redes sociais que encena sorrisos engessados, curtidos em série, mas incapazes de dizer algo sobre a carne viva que pulsa fora da tela.


Byung-Chul Han, em “A Sociedade da Transparência, lembra que vivemos sob a tirania da positividade: ser triste é fracassar, ser vulnerável é quase um crime social. Hickory é o arquétipo perfeito dessa condição: convencido de que não pode ser sensível, ele precisa de uma autorização externa, de um coração concedido por um outro. Assim como nós, que buscamos validação nos olhos digitais de estranhos, quando o coração já pulsava em nós, mesmo que invisível.


A armadilha da felicidade de fachada
O álcool e as redes sociais não são apenas válvulas de escape; são engrenagens de uma cultura que sustenta o vazio. O brinde exagerado, a risada gravada em vídeo, o “olha como somos felizes” publicado às pressas, tudo isso atua como uma farsa. A festa esconde o silêncio, a foto esconde o choro, a exibição esconde o medo de ser comum.

Mas essa busca pela alegria compulsória não é neutra. Ela reforça estruturas mais profundas, sobretudo o machismo estrutural.

 

O coração negado aos homens.
Na lógica patriarcal, o homem é educado para não sentir. A emoção é uma ameaça à masculinidade e sabemos que a fragilidade é sinal de fraqueza. Hickory acredita que não tem coração porque o mundo ensinou que sua humanidade deve ser suprimida. Quantos jovens e adultos hoje não bebem até desmaiar, não riem alto para mascarar o silêncio interno, não desdenham da sensibilidade por medo de serem lidos como frágeis?

Raewyn Connell, ao falar de masculinidades hegemônicas, explica que o poder masculino depende justamente desse exercício de negar a emoção e exibir dureza. O resultado é trágico: homens que não conseguem amar sem violência, que não sabem cuidar sem antes se justificar, que riem quando na verdade estão gritando por dentro.

E isso não se restringe a um grupo ou a uma classe: essa lógica atravessa todas as tribos, do campo à cidade, da periferia aos centros financeiros, dos adolescentes nas escolas aos adultos engravatados. Essa lógica se multiplica nas redes sociais. A ostentação, a bravata, o excesso de virilidade performada são os novos corações de lata. Um tipo de mecanismo para provar que existe algo ali, ainda que o interior esteja oco.

 

O peso que recai sobre as mulheres.

Enquanto homens são proibidos de reconhecer suas vulnerabilidades, as mulheres são pressionadas a manter a alegria disponível, a beleza pronta, o sorriso fácil. Uma engrenagem reforça a outra. O coração que falta a Hickory se converte em peso sobre Dorothy: é ela quem deve carregar a afetividade, é ela quem sustenta o laço humano que o patriarcado arranca dos homens. Algo importante de observar é quando as mulheres passam a buscar, tal como os homens, essa falsa liberdade baseada em anestesias e exibições, parece que também não encontram alívio é mais uma forma de se encaixar em um sistema que aprisiona pessoas.

bell hooks, ao refletir em The Will to Change, ressalta que o amor, como prática de liberdade, exige a libertação masculina dos papéis rígidos que o patriarcado dita. O coração silenciado de Hickory não é apenas um drama individual, mas pode ser mecanismo coletivo de perpetuação do controle.

 

O espelho que Hickory nos devolve.

Talvez o grande ensinamento de Hickory seja este: o coração nunca esteve ausente. O que falta é a coragem de assumi-lo contra as normas sociais que exigem dureza, alegria encenada, anestesia constante. Quando acreditamos que a felicidade está na bebida, no filtro, na validação alheia, repetimos a trajetória do Homem de Lata: pedimos algo que já é nosso, mas que nos ensinaram a ignorar.

Hickory é um lembrete: o vazio que a gente sente não é nosso, é algo que o mundo coloca na gente. O coração está lá, batendo, mesmo que a gente finja que não. Talvez o truque seja parar de buscar validação lá fora, na bebida, no like, no stories e começar a ouvir de maneira responsável o que já pulsa dentro da gente.

 
 
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